Nestas últimas semanas tenho estado a pensar muito no que significa estarmos em casa, no nosso lar. Há quem não tenha nem lar nem casa nenhuma; seja sem-abrigo . Esse talvez seja o mais miserável de todo o estado humano; frequentemente será a última etapa numa longa descida espiral resultante duma série de erros ou desventuras, seja o alcoolismo, a droga, uma deficiência ou doença mental, ou qualquer acidente que tornasse o pobre inapto para o trabalho. Um dos meus amigos canadianos costumava dizer que aceita trabalhar porque gosta imenso de dormir dentro de casa!
Talvez possamos pensar em “lar” ou “casa” em três sentidos: o “Espacial”, quer dizer a casa como lugar; o “Temporal”, no sentido de passar uma grande parte da nossa vida em casa (pelo menos, quando estamos adormecidos) e em reflectirmos sobre a sensação de permanência que reconhecemos ali. Mas identificando o sentido que é sem dúvida o mais importante, notamos que o lar está intimamente ligado à família e aos amigos, o que nos dá a terceira e final classificação do sentido “Relacional” de estarmos em casa.
Há muitas ocorrências das palavras “casa” e “lar” nas Escrituras, algumas dos quais nos podem espantar. Tocam todos estes três sentidos, e dão-nos bons exemplos e conselhos sobre como é que nós devemos olhar a ideia de “lar”, de “casa”.
A nossa casa canadiana, vendida |
Quanto a mim, no ano passado eu e a Audrey vendemos a casa em que tínhamos morado quinze anos, tendo sido proprietários, até àquela época, de diversas casas durante 30 dos nossos 34 anos de casamento. Foi impressionante mudarmos para um pequeno apartamento, e isso mesmo por um período curto antes de sairmos definitivamente do Canadá, o que pôs em jogo os três sentidos de “lar”. Saímos do lugar, não somente desta casa mas do nosso país (sentido Espacial), deixámos as rotinas diárias e até os nossos planos para o futuro (sentido Temporal), e afastámo-nos da família e dos amigos, embora só fisicamente, portanto, saímos também da casa no sentido Relacional.
Esta experiência levou -nos a pensar num primeiro trecho da Bíblia. Em Génesis, capítulo 12, versículo 1 lemos: “O Senhor disse a Abrão: ‘Deixa a tua terra, a tua família e a casa do teu pai, e vai para a terra que Eu te indicar.’” Claramente Abrão foi chamado a deixar o seu lar Espacial, Relacional, e também Temporal, porque não podia fazer planos nenhuns, além de simplesmente seguir Deus de dia em dia. Irmãos, estão dispostos a fazer o mesmo que Abrão?
No sentido do lugar “Espacial”, todo o ser humano e também todo o animal precisa de abrigo para ser protegido do frio, da chuva ou da neve, do sol e do vento; se não tiver abrigo, morre. Mas há mais: sentimo-nos seguros em casa, mesmo quando não estivermos tão seguros como pensamos. Erigimos muralhas à volta das nossas quintas há milénios. Na Inglaterra, em vez dos muros costumam cultivar sebes, mas o propósito é o mesmo. Se a casa fosse assaltada, os moradores sentir-se-iam violados; tanto mais nos casos em que os ocupantes fossem agredidos mesmo na sua própria casa.
Continuando no assunto do lugar, é claro que nos habituamos ao plano do nosso lar; após algumas semanas não esbarramos contra a mobília (pelo menos espero que não!) e não precisamos dum GPS para regressarmos a casa. Finalmente muitas vezes há coisas em casa que nos dão conforto físico e/ou emocional; eu por exemplo gostava muito duma série de poltronas que tinha usado nas várias casas. E é evidente que a “nossa” casa contém as “nossas” coisas, avaliadas quer por utilidade quer por ligação sentimental. Pessoalmente tenho saudades das minhas ferramentas e máquinas, armazenadas no Canadá,
Alguns objectos pessoais dos proprietários |
o que me impede de praticar os meus passatempos favoritos! E na casa onde moramos transitoriamente, todas as fotografias e os objectos de colecção pertencem aos donos ausentes, ninharias a não ser pelo significado pessoal para eles.
Jesus não teve nenhum lugar ao qual pudesse chamar casa. Em Mateus 8:19-20 um doutor da Lei judaica queria tornar-se discípulo dele, mas tanto quanto sabemos recuou, porque Jesus não tinha uma sinagoga em que pudesse ensinar, nem sequer nenhum lar. Jesus disse-lhe: “As raposas têm tocas e as aves do céu têm ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça.” Podemos imaginar que o doutor já se tinha estabelecido numa situação bem confortável que afinal não quis abandonar para seguir um sem-abrigo! O apóstolo Paulo disse o mesmo que Jesus duma forma ainda mais forte, em I Coríntios 4:11: “Até este momento, sofremos fome, sede e nudez, somos esbofeteados, andamos errantes, e cansamo-nos a trabalhar com as nossas próprias mãos.” Estas não eram as circunstâncias esperadas por um rabi, nem por um discípulo rabínico do primeiro século, como Paulo, tendo sido um fariseu, sabia bem. Nós mesmos estamos prontos para seguir Jesus, quaisquer que sejam as condições?
O autor da carta aos Hebreus trata de Abraão no capítulo 11 versículos 8 a 10. Diz em parte, “Pela fé, Abraão, ao ser chamado, obedeceu e partiu para um lugar… sem saber para onde ia. Pela fé, estabeleceu-se como estrangeiro na Terra Prometida, habitando em tendas, tal como Isaac e Jacob, co-herdeiros da mesma promessa…” A palavra “promessa” faz-nos pensar no aspecto “Temporal” do lar. Temos todos hábitos e rotinas da vida diária que estão ligados ao lar. Qual é a primeira coisa que fazes após te levantares? Eu costumo caminhar aos tropeções até ao chuveiro para acordar! Há sem dúvida muitas actividades num ciclo diário ou semanal das quais te desvias raramente. Para as mulheres: haverá quem conheça o fenómeno de nidificação? Desde que engravidou, começou a preparar o quarto do bebé, não é verdade? E é provável que o seu marido tenha protestado por achar excesivo e cedo de mais, que faltava ainda muito tempo para a data do nascimento! Deste modo vemos que as nossas rotinas em casa se ligam ao futuro, aos nossos planos, e que nos dão um sentido de permanência; pois não há nada de mais permanente no mundo temporal, do que o ciclo de nascimentos de geração em geração.
Grande ninho alentejano |
O Salmo 84:4-5 diz: “Até os pássaros encontram abrigo e as andorinhas um ninho para os seus filhos, junto dos teus altares, Senhor do universo, meu rei e meu Deus. Felizes os que habitam na tua casa e te louvam sem cessar.” Isto alude aos planos que temos de fazer e onde temos de nos estabelecer “em casa”.
Os salmistas trazem-nos também ao terceiro sentido da palavra “lar”. Em casa vivemos normalmente com os nossos familiares, e costumamos conviver com os nossos parentes e amigos próximos. Diz-se em inglês, “Make yourself at home”, “Sinta-se em casa ”, quer dizer, esteja à vontade. É verdade que há quem faça todo o convidado sentir-se perfeitamente à vontade, como se estivesse na sua própria casa. De passagem, essa hospitalidade generosa é a ordem de Deus para nós, como diz em Hebreus 13:2: “Não vos esqueçais da hospitalidade, pois, graças a ela, alguns, sem o saberem, hospedaram anjos.” Claro, existindo poucos hotéis no mundo antigo, acolher viajantes e estrangeiros era muito importante e na igreja, até era uma das qualificações necessárias para alguém se tornar bispo.
Em traços mais largos temos relações com vizinhos que são, regra geral, pessoas semelhantes a nós mesmos. Excluindo talvez as grandes cidades cosmopolitas, não é verdade que os seus vizinhos falam a mesma língua, têm os mesmos costumes, e até têm o mesmo aspecto físico e etnia que nós? Está disposto a receber em casa qualquer pessoa diferente que Deus lhe mande?
Eu já vos disse que não tenho lar, a não ser provisório, e que me sinto um pouco como Abraão. No evangelho segundo Marcos, capítulo 10 e versículo 29 encontramos estas palavras de Jesus: “Em verdade vos digo: quem deixar casa, irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos ou campos por minha causa e por causa do Evangelho, receberá cem vezes mais agora, no tempo presente, em casas, e irmãos, e irmãs, e mães, e filhos, e campos, juntamente com perseguições, e, no tempo futuro, a vida eterna.” Quem me dera que a palavra “perseguições” fosse eliminada! Porém, recebo muito alívio desta promessa de Deus. Junta a muitas outras promessas bíblicas, tenho a certeza de que as minhas necessidades, tanto emocionais como físicas, serão satisfeitas até mais do que o suficiente, pelo poder e pela vontade do Senhor.
Esse trecho leva-nos para a conclusão deste estudo. Deixar casa e campos é deixar no sentido Espacial, no sentido do lugar. É claro que deixar familiares nos dá o sentido Relacional. E quanto ao Temporal, é o mais importante de todos, pois Jesus prometeu-nos a vida que ultrapassará todo o tempo. O apóstolo Pedro disse, em segunda de Pedro 3:13: “Nós, porém, segundo a sua promessa, esperamos uns novos céus e uma nova terra, onde habite a justiça.” Não tenho tempo suficiente para ligar este texto com as promessas do antigo testamento nem com a descrição dos novos céus e da nova terra em Apocalipse 21, mas aconselho vivamente que leiam esse capítulo. E há mais! Em João 14:2, Jesus diz: “Na casa de meu Pai há muitas moradas. Se assim não fosse, como teria dito Eu que vos vou preparar um lugar? E quando Eu tiver ido e vos tiver preparado lugar, virei novamente e hei-de levar-vos para junto de mim, a fim de que, onde Eu estou, vós estejais também.”
Na realidade, Jesus tinha e tem um lar, no entanto tinha sido, na terra, como um sem-abrigo. Eu tenho um verdadeiro lar, cujo lugar é nos céus, em que ficarei mesmo junto de Jesus, e quanto ao tempo – estarei em casa eternamente e para sempre! Tu também, se já conheces Jesus, se já te arrependeste sinceramente dos teus pecados e o aceitaste como Salvador, se ele é o teu Mestre e Senhor, tu também tens uma tal casa. E não é umas águas-furtadas, é uma mansão!
Pois é assim que devemos pensar em relação à nossa casa, ao nosso lar. Paulo diz , em 2 Coríntios 5:8: “Cheios dessa confiança, preferimos exilar-nos do corpo, para irmos morar junto do Senhor.” Cá no mundo não estamos verdadeiramente em casa. Tenho de dizer imediatamente que no versículo seguinte , ele aceitou também permanecer na terra para agradar aos seus filhos espirituais, coríntios e outros, ou melhor para os servir, para partilhar com eles a graça de Deus. E tanto quanto possível tentava abrigar-se e alimentar-se; nós podemos fazer o mesmo. Porém é essencial não nos agarrarmos muito às nossas casas, campos, e até às nossas famílias cá, lembrando-nos sempre do lar celestial.
Há muito mais que podia ser dito sobre o assunto do nosso trabalho aqui no mundo, enquanto esperamos ou a morte ou a chegada do Senhor. Para mim é útil pensar que estou numa viagem profissional, de trabalho, andando às vezes desabrigado, mas não sem propósito. Pois evito acumular muitas coisas, porque as “coisas” não permanecem e são todas inúteis para o meu eterno futuro celestial. Por outro lado, tento cultivar relacionamentos, porque passarei a eternidade com todos os meus familiares e amigos já crentes, e desejo também que todos os outros se tornem crentes em Jesus.
Lembremos mais uma vez do salmo que já li: “Até os pássaros encontram abrigo e as andorinhas um ninho para os seus filhos, junto dos teus altares, Senhor do universo, meu rei e meu Deus. Felizes os que habitam na tua casa e te louvam sem cessar.” No espaço, nos relacionamentos, e no tempo, esse é o nosso lar incomparável e glorioso!
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